Entramos no futuro de costas

Nina Weingrill
5 min readSep 28, 2022

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“Entramos no futuro de costas.” Ouvi essa frase num encontro em que participei com organizações de mídia cívica em Atlanta, nos Estados Unidos, há duas semanas. Era a segunda vez que visitava a cidade, após um intervalo longo de exatos 20 anos. Aos 16 ganhei uma bolsa de estudos para conhecer de perto o movimento dos Direitos Civis liderado por Martin Luther King Jr. Foi quando entrei em contato com a história de resistência e ativismo do movimento negro norte-americano. Nem preciso dizer que, como uma criança branca de classe média do interior de São Paulo, não havia sido educada sobre o que era racismo — Brasil, anos 90, cê lembra?

Aquela viagem me marcou profundamente, mas eu só saberia duas décadas depois o quanto. De volta à cidade, me encontro com jornalistas e ativistas que trabalham de forma incansável para atender às necessidades de informação de suas comunidades — na maior parte não brancas e periféricas. Estava lá para compartilhar os aprendizados do meu trabalho aqui no Brasil, com a Énois: 13 anos dedicados a pensar e construir um jornalismo que reflete a estrutura social, econômica e racial do país.

Quando contei que estava de saída da organização, sucessão virou o tema central das conversas. A pergunta entre todes era a mesma: “como é que faz isso?” Fiquei surpresa ao perceber que, como eu, a maior parte das pessoas ocupando cargos de direção desejava transicionar. Pela primeira vez, eu não precisava explicar a ninguém a importância de pensarmos a alternância de poder. Que alívio!

Voltei para casa animada, com a sensação de que talvez meu movimento faça parte de um movimento maior, de organizações da sociedade civil que foram fundadas nos últimos 10 anos e que, agora maduras, começam a pensar como suas fundadoras e fundadores abrem espaço para que a próxima geração assuma o comando.

Claro que não sou a primeira e tive referências importantes (com as quais conversei muito. Obrigada Tony, Ju, Carol, Graci e tantos outros) para escolher de que forma eu queria conduzir esse processo. Mas fato é que esse caminho ainda foi pouco trilhado. Boa parte das organizações sociais nascidas nos anos 90 têm lideranças que, por diferentes motivos, continuam a presidir as instituições que ajudaram a fundar. E tudo bem se funciona pra elas.

Mas isso sempre me incomodou um pouco. Por um lado, de ter que fazer uma única coisa daqui pra frente, porque sim, a responsabilidade é imensa. E de outro, que organizações da sociedade civil deveriam operar, como o nome já diz, a partir de um movimento dessa própria sociedade organizada — e não de uma ou duas cabeças.

Por isso, venho abrindo há alguns anos espaço interno para viver uma transição. E há um ano de forma consciente e compartilhada com minhas parceiras e parceiros de jornada. Uma coisa posso dizer já: que importante é poder passar por essa experiência de um jeito transparente e coletivo. E, no meu caso especificamente, poder ter tempo para reconhecer as mudanças que operamos juntas e juntos.

Quando começamos a construir essa história, muitas das coisas que hoje temos como óbvias (diversidade, inclusão, representatividade) eram uma grande novidade e geravam até muita resistência no campo jornalístico — lembra também que o Brasil não era racista pra revista Veja? Treze anos depois, muita coisa mudou, dentro e, especialmente, fora da Énois. E eu gosto de contar a mim mesma que a organização que ajudei a construir teve um papel importante nesse atravessar.

Estar na Énois, ao lado de tantas pessoas sensíveis e comprometidas, foi transformador. Aprendi como criar mudança no mundo. Como usar minha mente, meu corpo, meus privilégios e meu espaço para compartilhar poder. E em meio a muitos (mas muitos mesmos) erros e alguns bons acertos, me senti sempre segura, apoiada e pertencente.

Aprendi a formar gente, a me formar, a co-liderar, a ouvir, a sair de cena. E a entender, acima de tudo, que, se queremos construir uma organização diversa, é imperativo termos alternância de poder.

Este passo abre um buraquinho para que isso aconteça numa organização que foi fundada por mulheres brancas e de classe média. E que sente que é tempo de entregar às mãos do futuro uma estrutura que precisa atender a novas demandas que se apresentam.

Tenho enorme segurança de que a Énois será acompanhada pelas melhores, minhas maiores parceiras Amanda e Simone — que honra foi crescer ao lado de vocês. As duas, cada uma a seu jeito, me mostraram como o mundo pode ser quando uma organização e as pessoas que nela trabalham dedicam tempo para construir confiança, escuta e afeto. Se posso optar por fazer um trabalho feminista, anti-racista e que busca por equidade — sem descuidar da minha saúde mental –, é porque elas me ensinaram a fazer isso.

Agradeço em especial a essa equipe comprometida que fica (Bruna, Carol, Flávia, Gisele, Glória, Isa, Ivan, Jéssica, Mel, Sanara, Sara) e sua abertura para se repensar e se reorganizar CONSTANTEMENTE (em caixa alta pra vocês entenderem a constância dessa reorganização). E à chegada dos novos, que assumem os espaços que deixo na Diretoria Financeira; Elaine Silva e Carla Pacheco, e na recém criada área de Dados e Métricas; Lucílio Correia. E aos nossos colaboradores, nossa rede, nossos apoiadores e financiadores!

Em algum momento entendi que o que eu queria ver no jornalismo não tinha lugar no mundo. Por sorte, conseguimos criar estrutura para que essa construção fosse possível. A Énois foi minha plataforma para sonhar. E como é importante a gente manter nossos sonhos vivos e aquecidos — em especial nos momentos como o que vivemos, à beira de uma eleição que simboliza vida e morte em tantos aspectos subjetivos, mas também muito reais.

Saio com o coração tranquilo de que é só o começo de outras transformações que esse organismo vivíssimo vai operar no mundo. E com uma bagagem imensa de experiências, com muitos amigos queridos, um livro que sai agora do forno que conta de forma generosa a história das pessoas que construiram a Énois (e que você pode receber apoiando a gente por aqui) e com uma festa para celebrar a democracia e nosso aniversário — no dia 05 de novembro. Marca na agenda!

Entramos no futuro de costas. E esse provérbio, que descobri ser Maori, nunca fez tanto sentido. Passado, presente e futuro estão entrelaçados e, por mais que a gente não enxergue no cotidiano, quando olhamos para trás, dá para ver o que a nossa história moldou. E o que dela escolhemos honrar, e o que dela queremos e precisamos levar pro futuro.

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Nina Weingrill

jornalista e co-fundadora @enoisconteudo | Escola de Jornalismo | #RedaçãoAberta. bolsista @ICFJ . pesquisa ecossistemas de informação local.