Do jornalismo cidadão para o jornalismo cívico

Nina Weingrill
4 min readJan 30, 2024

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Neste artigo especial para o Farol Jornalismo, Nina Weingrill, uma das fundadoras da Énois, defende a importância de um jornalismo que trabalhe pelos interesses de uma determinada comunidade

Em algum momento, quando começamos, na Énois, a formar jovens para que pudessem contar suas histórias e informar suas comunidades sobre aquilo que era pauta pra eles, jornalistas diziam que o que estávamos fazendo era jornalismo cidadão.

Confesso que sentia um desagrado ao escutar isso porque, pra mim, parecia que o “cidadão” era utilizado como uma forma de desqualificar o tipo de jornalismo que estávamos produzindo. Havia também quem chamasse de jornalismo comunitário. Veja, não sou e nem era contra a nomenclatura, inclusive diversos coletivos que vieram antes de nós lutaram para que seus processos fossem reconhecidos dessa forma distinta. Mas do lugar em que escutava, era como se todas essas terminologias fossem necessárias para diferenciar aquilo que era produzido dentro de um jornal que tinha fundadores, anunciantes e jornalistas remunerados de todo o resto.

E era. Mais recentemente (e eu já escrevi sobre isso aqui), eles resolveram sair do armário e começaram a chamar esse tipo de jornalismo engravatado de “jornalismo profissional”. Não vou entrar nessa disputa agora, porque este texto não é sobre isso. Este texto é sobre outra coisa. Sobre um novo movimento que observo dentro do jornalismo.

Acabo de voltar de uma viagem para os Estados Unidos onde passei três dias trocando experiências com uma comunidade de aprendizagem de jornalistas que utilizam a palavra “cívico” para qualificar o tipo de jornalismo que fazem, a Future of Local News Network. Estou no meio do caminho de uma pesquisa que busca entender que tipo de jornalismo é esse e de que forma ele se relaciona com esse histórico de organizações fundadas em bases comunitárias. Quais suas características comuns, valores, práticas e visões? Qual é a fotografia atual desse campo? E como ele estabelece relações entre si e com suas comunidades? O que ele deseja para o futuro?

Até agora, me parece muito com tudo o que acompanho — e acompanhei durante meu trabalho na Énois ao longo desses últimos 15 anos. Um fazer que leva muito em conta duas coisas: 1. as pessoas (ou a audiência, como alguns entendem), participantes centrais do processo de decisão, produção e distribuição da informação e 2. a transformação que esse tipo de jornalismo pode (e deve) causar no mundo. Uma das pessoas que entrevistei, fundadora de uma dessas organizações, definiu seu trabalho como: “em vez de contar histórias que descrevem algo, queremos contar histórias que MOVEM as pessoas e o mundo de forma generativa”.

Sem nenhum pudor de colar o jornalismo no ativismo, a reflexão que queria propor aqui é a de que percebo um movimento crescente de organizações que entendem cada vez mais que o jornalismo é uma ferramenta de mudança, e que não deveria se limitar apenas a informar o público. Ou seja, que deveria ter uma Teoria de Mudança na sua essência. E que não é menos jornalístico ou pouco objetivo afirmar que trabalha pelo interesse de uma determinada comunidade. É como dizer que defende a democracia, mas fazer isso a partir do local, onde as transformações de fato têm impacto direto na vida das pessoas.

É claro que isso não se dá à toa. A maior parte dessas organizações tem como seus fundadores pessoas negras, imigrantes e marginalizadas pelo status quo. Cobrem comunidades que têm seus direitos negados. Nesse contexto, fica evidente que informar não é suficiente. Que essas organizações precisam atuar de formas semelhantes a movimentos sociais — e bebem muito dessas referências para desenhar suas estratégias.

Isso não é novo. O que é novo aqui é que, com um aumento de investimento direto da filantropia no jornalismo — e isso aconteceu tanto nos EUA quanto no Brasil — , o que era escasso, pontual e tinha um tempo de vida limitado, está se transformando num campo (essa é minha hipótese). Num organismo que começa a se organizar a partir de princípios comuns, de exercícios do jornalismo que se parecem.

Podemos argumentar, por exemplo, que há dez anos não faria sentido o nascimento de uma associação como a Ajor (Associação Brasileira de Jornalismo Digital). Mas que, a partir de um campo que vem recebendo mais investimentos, há uma demanda por entidades que trabalhem a favor do interesse dessas iniciativas.

Pude observar também, nessa pesquisa, como esse tipo de visão molda uma estrutura completamente diferente dentro das organizações, com nomenclaturas e cargos próprios. Como é o caso de equipes de “envolvimento comunitário e educacional”, ou “coordenadores de divulgação local” — ainda que repórteres e editores permaneçam, estão cedendo espaço para uma visão que prioriza as relações.

Um estudo produzido recentemente por Natalie Stroud, professora da Universidade do Texas, e publicado no Nieman Lab, revelou que, quanto mais espaço um jornal dava aos seus leitores, aumentava em 1,75 o número de novas assinaturas. O projeto acompanhou durante seis meses redações perguntando aos seus leitores as pautas que gostariam de ver cobertas, dando à audiência o poder de decisão.

Esse novo campo (que também não é tão novo assim, se formos fazer uma historiografia das práticas utilizadas por essas organizações) traz consigo desafios grandes, como o financiamento, já que essas mesmas fundações que hoje aportam recursos na área não serão capazes de perenizar seus investimentos a longo prazo. E, de forma geral, investimentos públicos não enxergam esse ecossistema de informação local — ou se sentem ameaçados por ele.

Mas apontam também muitas soluções, inclusive para o jornalismo tradicional. Pra mim, a maior delas, como conta Natalie em seu estudo, tem a ver com colocar o leitor no centro. Talvez por isso a palavra cívico faça tanto sentido para esse movimento. Porque resgata o propósito de que a informação é um direito, e, como direito, deve ser considerado um bem público, como afirma o prêmio Nobel Joseph Stiglitz. Algo que todo cidadão, em um estado democrático, deveria ter acesso. E que, portanto, se transforma na principal preocupação de uma mídia que tem como premissa servir, de fato, ao interesse público. Do seu público.

Texto originalmente publicado no Farol Jornalismo, em outubro de 2023

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Nina Weingrill

jornalista e co-fundadora @enoisconteudo | Escola de Jornalismo | #RedaçãoAberta. bolsista @ICFJ . pesquisa ecossistemas de informação local.