Atender às necessidades básicas de informação de uma comunidade é função do jornalismo local

Nina Weingrill
10 min readMar 13, 2023

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*este texto foi construído para uma aula realizada no contexto do curso Jornalismo Local 2021, da Abraji

A pandemia afetou diretamente redações ao redor do mundo. Uma pesquisa do Tow Center registrou que o primeiro ano da pandemia rendeu cortes nas receitas publicitárias dos jornais (uma queda de pelo menos 50% nos anúncios). E, para lidar com os cortes, os veículos reduziram sua produção de conteúdo, salários e número de funcionários.
Tanto no Brasil quanto em outros países, veículos de cidades pequenas e médias foram os mais atingidos pelos efeitos da crise econômica decorrente da pandemia. A maior parte de seus anunciantes (o comércio local, restaurantes, bares, produções culturais) sofreram muito com as medidas de distanciamento social e isolamento. Além disso, o contexto de trabalho remoto afetou jornais que já careciam de estrutura para trabalhar.

Pra completar esse cenário, 2020 foi um ano de eleição. Sendo as prefeituras os principais patrocinadores de alguns portais e jornais locais, grande parte das notícias circulando eram favoráveis ao governo — e portanto, camuflavam muitas vezes a situação da pandemia nos municípios.

Por outro lado, o Datafolha revelou, em levantamento realizado em 18 de março de 2021, que 61% das pessoas confiavam nas informações sobre a pandemia veiculadas por emissoras de TV, 56% nas dos jornais e 50% nas das emissoras de rádio. O índice de confiança em redes sociais como WhatsApp e Facebook era bem mais baixo: 12%.

Em outro levantamento da Claro, operadora de TV a cabo, mostrou que a audiência dos canais de notícias aumentou 118% desde que a pandemia começou. Na TV aberta, o efeito é semelhante: a Rede Globo, que passou a dedicar onze horas de sua grade para o jornalismo, tem quebrado recordes de audiência.

Apesar das dificuldades que enfrenta, o jornalismo local no Brasil tem também uma taxa de credibilidade significativa. Um estudo conduzido pelo Reuters Institute revelou que 68% dos brasileiros afirmam acreditar neste tipo de jornalismo, que apenas perde em grau de confiança para a Rede Bandeirantes (76%), Jornal do SBT (75%) e Record (74%), mas supera, por exemplo, O Estado de S.Paulo (66%) e UOL (66%).

A gente pode olhar pra esses dados e assumir que a demanda de informações sobre atendimento médico e vacinação no contexto local — e não nacional — disparou entre os moradores das cidades. Assim como a procura por fontes confiáveis pra checar rumores sobre a pandemia, como a falta de vagas em hospitais ou de vacinas em determinado município.

Podemos dizer que as pessoas estão contando mais com suas fontes de informação local pra entender como a pandemia está afetando seu cotidiano, assim como o que fazer dentro do seu contexto pra se proteger e se defender contra a desinformação.

E isso tudo é um bom sinal. Mas quando falamos sobre o jornalismo local no Brasil a gente não pode parar a análise por aí. Especialmente porque os contextos locais são muito específicos. Para fazer esse recorte, vou utilizar a definição da Sonia Aguiar, no livro Territórios do Jornalismo, que buscou demarcar as singularidades desse jornalismo geograficamente segmentado a partir da proximidade espacial e também identitária das iniciativas com seus territórios de cobertura.

Em vez de informar sobre, devemos informar para

A pandemia foi propícia para o surgimento — e mais, consolidação — de inciativas que aproveitaram as lacunas de informação para se estabelecer como fonte segura de informação local, em especial nos desertos de notícia — assim como comunidades sub representadas em grandes centros urbanos.

Esse tipo de jornalismo, que pode ter vários nomes, como jornalismo regional, de interior, local, hiperlocal, periférico, favelado, comunitário, etc, reforçou, durante a pandemia, algumas caracteristicas importantes que valem a pena ser pontuadas:

> são produzidas para a comunidade/público e não sobre ele: isso quer dizer que as iniciativas possuem um conhecimento profundo sobre o perfil da população local e privilegiam fontes que dão vazão a essas identidades socioculturais, políticas e econômicas
> tem uma preocupação em escutar as demandas da população local para pensar a pauta/canais de escuta e diálogo entre o cidadão e o poder público, fiscalizando e cobrando os órgãos governamentais
> são, em sua maioria, organizações sem fins de lucro, cooperativas ou organizações não formalizadas juridicamente
> possuem alto engajamento com as comunidades atendidas fazendo uso das mídias digitais, estabelecendo canais de comunicação diretos com o público e fontes. Forte uso de whatsapp e redes sociais. Há o claro entendimento que esse tipo de jornalismo só é possível com a participação do público na produção das notícias. Nessa interação é possível identificar oportunidades de colaboração, pauta e até produtos (inovando no formato e linguagem do conteúdo oferecido).
> pautas são mais diversas: por causa da pandemia as desigualdade ficaram ainda mais expostas, assim como a necessidade de trazer outras perspectivas para a cobertura. Cobrir isso localmente permitiu que essa granulação de realidades fosse feita de forma mais complexa, sem tratar todo mundo como a mesma coisa.
> não gastam muito tempo fazendo fact-checking, mas sim garantindo que as pessoas tenham a informação que precisam. Olhar direcionado à prestação de serviço.
> têm impacto real no local, com mudanças de leis/políticas públicas e respostas mais ágeis do poder público para violações

O jornalismo nas favelas e periferias durante a pandemia

Hoje, a maioria dessas organizações, coletivos e mídias ainda se sustentam com base nos modelos tradicionais de venda de espaço publicitário. E no caso das organizações sem fins lucrativos, de financiamento de fundações (a lista abaixo é um compilado das fontes de financiamento mais utilizadas por veículos independentes em 2016 compilado por mim a partir do mapa da Agência Pública, do maior para o menor):

  1. não se financia/se auto-financia/tem outro trampo
  2. publicidade
  3. doação de pessoa física/jurídica
  4. assinaturas
  5. editais
  6. prestação de serviço
  7. crowdfunding
  8. lei de incentivo
  9. publicações
  10. cursos/oficinas
  11. eventos
  12. investidores
  13. venda de produto
  14. parceria/venda de conteúdo

Com a queda da publicidade devido a pandemia, essas iniciativas têm sofrido para se manter operando. A mesma lógica se aplica localmente para a verba pública destinada aos anúncios: os recursos ficam restritos a veículos de cobertura nacional e também tem como baliza o tamanho da audiência (portanto muito focado em TVs e rádios) — e no caso do contexto político atual, ideologicamente alinhados ao governo.

Em contrapartida, o apoio das fundações têm se mostrado crucial para organizações de notícias sem fins lucrativos de todos os tamanhos. Um relatório recente do INN, por exemplo, descobriu que doações de fundações representavam uma média de 47% da receita em publicações locais, nacionais e globais.

Um outro relatório, produzido pelo Media Impact Fund, mostrou que as doações filantrópicas ao jornalismo quadruplicaram entre 2009 e 2019 nos Estados Unidos. Um sinal claro de que o campo está crescendo exponencialmente, mas também de que está ainda muito dependente de fontes únicas de financiamento, no caso de fundações privadas.

No Brasil, esse apoio ainda é desproporcional, porque atinge em maior parte publicações com foco nacional, deixando as notícias locais de fora. Ou seja, o dinheiro não chega nos territórios.

No entano, a pandemia promoveu uma mudança nesse cenário, com a abertura maciça de fundos emergenciais de financiamento. Todas as fundações que atuam no Brasil lançaram mão de recursos adicionais para apoiar iniciativas de jornalismo e comunicação que estavam atuando em territórios vulneráveis, que são o caso, em maior parte, dos desertos de notícia.

O impacto desse investimento excedente foi crucial para a estruturação de alguns desses veículos. Gostaria de apontá-los por meio da análise de caso de dois deles, situados nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo.

>> data_labe

O data_labe é um laboratório de dados e narrativas que fica na favela da Maré, no Rio de Janeiro. A equipe é composta por jovens moradores de territórios populares que produzem novas narrativas por meio de dados.

Durante a pandemia, e por meio de recursos de fundo emergencial, eles puderam fortalecer a organização em duas dimensões:

  1. jornalismo — conseguiram ampliar a equipe de jornalismo para fazer uma cobertura direcionada sobre a pandemia para favelas e população favelada do Rio de Janeiro. A equipe dobrou de tamanho, de 10 para 20 pessoas. E o resultado desse trabalho se desdobrou em outras oportunidades de financiamento via editais internacionais e parceria com veículos nacionais para republicação do conteúdo, estabelecendo a mídia como um ator importante dentro do campo jornalístico
  2. dados — o projeto Cocozap, que existe desde 2018 e mapeia a situação de saneamento básico na Maré a partir de dados e registros de moradores, recebeu mais atenção durante a pandemia por causa da urgência da temática relacionada à saúde nos territórios. Antes com imensa dificuldade de se financiar, o projeto recebeu recursos diretos e pode, assim, pautar o plano municipal no campo do saneamento básico no Rio de Janeiro — primeiro impacto em política pública registrado pela organização, que tem em sua missão atuar a partir da geração cidadã de dados

A avaliação do grupo é que a pandemia foi uma oportunidade de tratar de temas que já eram prioridade para a comunidade, mas que agora eram visto pelos financiadores como relevantes e, portanto, receberam recursos. Também sentiram mais possibilidade de renegociação para projetos e cronogramas.

“Ter consciência da missão da organização foi crucial, senão as demandas externas poderiam mudar nossa operação. Ninguém nos procurou pra dar cesta básica, por exemplo, mas soubemos de muitos coletivos que receberam essa proposta de financiadores. A gente participou de outras redes como estratégia, mas sempre pra olhar dados e informação, impacto público e saneamento. Conseguimos focar nas pautas que nos eram essenciais”, afirma Gilberto Vieira, co-fundador.

“A gente também recortou o público-alvo durante a pandemia. Não tinhamos clareza de quem, de fato, nos lia. Agora estamos mais focados na favela jovem e universitária e isso pautou um redesenho das nossas produções. O design ficou mais jovem, colorido, menos sério. Os textos diminuíram de tamanho consideravelmente. E isso nos ajudou a consolidar produtos, como o podcast”, explica Gilberto.

>> Agência Mural

A Agência Mural é a primeira agência de notícias, de informação e de inteligência sobre as periferias e feita pelas periferias de São Paulo.

A organização, que nasceu digital — os correspondentes se encontram desde sua fundação apenas uma vez por mês e tem grande parte do trabalho definido e realizado de forma online — viu a forma de trabalhar mudar pouco durante a pandemia. “A gente fez algumas adaptações, como mudar do Whatsapp para o Slack para organizar melhor os assuntos, por exemplo. Mas no geral, já eramos muito virtuais”, conta Anderson Menezes, co-diretor.

Em 2018, a organização recebeu recursos da OSF para estruturar seus processos de governança. Com a pandemia — e o crescimento no tamanho da equipe, de 7 para 15 pessoas fixas e mais 40 colaboradores –, eles se viram obrigados a organizar os fluxos internos, de comunicação, pagamento, processos de edição, seleção de pautas, contratação de pessoas, etc. Foi uma oportunidade para o desenvolvimento institucional da Mural.

A urgência na busca por informação de qualidade por moradores das periferias também fez com que o veículo lançasse mão de um novo produto. “Eram muitas incertezas e desinformação e elas vinham, inclusive, da nossa rede de correspondentes. Resolvemos então lançar um podcast diário para correr no whatsapp. Estavamos na onda alta do áudio e era uma estratégia que a gente ainda não tinha testado com nosso público”, diz Anderson. O projeto foi desenhado para durar 15 dias e eles acabaram fazendo 160 episódios — distribuindo para uma lista de 2500 assinantes diários. “Aumentamos em mais de 100% a quantidade de produção mensal nesse último ano. Em cima disso, começamos o processo de aceleração do Facebook pra lançar uma filial da Mural em Salvador, publicando pautas semanais sobre as periferias da cidade”, diz.

Isso tudo foi possível porque a organização aumentou sua receita, graças aos fundos emergenciais. “A gente teria fechado o ano de 2020 no positivo, mas não teríamos amadurecido tanto em tão pouco tempo”, afirma Anderson.

A Mural também trabalhou, ainda que com menos energia, na frente de captação de pessoa física, lançando uma campanha de matchfunding para arrecadar 30 mil. Sua base de doação recorrente, no entanto, não aumentou durante a pandemia. Eles arrecadam cerca de R$ 1800 por mês e têm feito campanhas pontuais. A organização avalia que o trabalho de conversão ainda é alto para pouco recurso arrecadado via pessoa física.

A audiência aumentou 280% no site no período. Anderson avalia que isso se deu a três motivos principais: maior produção de conteúdo, trabalho exaustivo de SEO e adequação do conteúdo ao público final. “Tivemos um entendimento maior sobre nossa audiência durante o último ano. Antes, achávamos que as pessoas acessavam o conteúdo porque queriam saber o que rolava nas periferias. Na pandemia, em especial nas matérias sobre auxílio emergencial, vacinação nos bairros e fornecimento de água potável o tempo de leitura é altíssimo (entre 6 e 7 minutos). Há sim um entendimento de que a nossa audiência também ficou mais engajada porque o conteúdo foi pensado pra ela. Mais serviço”, conta.

A mídia explorou também mais formatos, em especial para o instagram, com o uso de ilustrações para contar as histórias.

A perspectiva para o fim da pandemia é que parte dos investimentos emergenciais feitos se renovem, agora de forma a garantir a continuidade dos projetos da organização. “Há um entendimento de parte desses financiadores, que não investiam no jornalismo, de que esse recurso é extremamente necessário para garantir o desenvolvimento local. Mas também sabemos que boa parte vai migrar seu financiamento para outras áreas assim que a pandemia acabar”, afirma.

O crescimento exponencial da audiência também abriu outro flanco de investimento para a Mural que está mais direcionado às parcerias de produção de conteúdo, como é o caso da colaboração com o Spotify — onde lançaram juntos um programa de podcast para falar sobre as periferias. “Estar nesses canais, assim como participar do Roda Viva, por exemplo, nos coloca em contato com outras audiências e ajuda a diversificar as entradas de recurso”, diz.

Lições do campo para repensar o financiamento

Para encerrar, ficam aqui algumas reflexões que podemos fazer sobre caminhos para tornar iniciativas de informação local financeiramente saudáveis e sustentáveis a longo prazo — diversificando as fontes de recurso:

  1. Precisamos pensar em como pautar a criação e o fortalecimento de estruturas públicas que suportam a produção de informação local, como é o caso do VAI em SP — Programa de Valorização das Inciativas Culturais — que financia projetos oriundos de grupos periféricos da cidade, muitos com foco em comunicação local e comunitária.
  2. Fortalecer entidades que já existem e recebem recursos de Fundações e Editais para que ampliem seu escopo de atuação para desertos de notícia, fazendo com que a cobertura jornalística passe a acontecer nesses espaços, apoiando a criação de ovas estruturas de informação local. Como é o caso da atuação da Agência Mural em Salvador.
  3. Exigir das plataformas (como Google e Facebook) uma distribuição mais descentralizada de recursos, seja via programas de fomento ou via aplicativos, como é o caso do Google Destaques, que oferece uma curadoria de conteúdo de jornais parceiros e em troca os jornais recebem tráfego, audiência e uma fonte recorrente de receitas.
  4. Tijolo por tijolo, garantindo o investimento via pequenas doações da própria comunidade no jornalismo, via assinatura, programas de membros e financiamento recorrente.

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Nina Weingrill

jornalista e co-fundadora @enoisconteudo | Escola de Jornalismo | #RedaçãoAberta. bolsista @ICFJ . pesquisa ecossistemas de informação local.