A gente quer salvar a indústria ou garantir o direito à informação?

Nina Weingrill
7 min readSep 29, 2023

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Necessidade de se pensar uma política pública que dê suporte para o ecossistema de informação no presente parece estar de fora de debate sobre regulação da mídia

O novo governo nem bem sentou à mesa e precisa urgentemente lidar com uma batata quente: discutir a regulação da mídia enquanto combate a epidemia de desinformação e estabelece limites mais rígidos para o funcionamento das plataformas. Tudo isso com as eleições municipais batendo à porta — e com elas, um potencial explosivo de notícias falsas pulverizadas em nível local.

O debate parece estar sendo conduzido a toque de caixa. Há urgência da sociedade civil e da classe política na pauta, e também da indústria do jornalismo, que enfrenta uma crise de modelo de negócios agravada a partir dos anos 2010 e vê na discussão a bala de prata que pode salvá-la pelos próximos anos.

Estamos falando do PL das Fake News (2630/2020), cujo próprio nome está desatualizado, porque o texto foi reescrito para propor, além de regras para a moderação de conteúdo nas redes sociais e de transparência para as plataformas, as questões de remuneração de jornalistas e empresas jornalísticas pelo conteúdo produzido.

A Austrália aprovou uma legislação semelhante em 2021, mas, segundo a Columbia Journalism Review, a lei é pouco transparente no repasse de recursos, pois os acordos são protegidos por cláusulas de confidencialidade entre as plataformas e os meios, além de ficar para as empresas de tecnologia definir os valores e com quem negociar.Associações de jornalismo, como é o caso da Ajor e da Fenaj, têm chamado atenção para o artigo 38 da lei, que, como está redigido, pode reforçar desequilíbrios: favorecer a negociação entre os grandes grupos de comunicação e as plataformas, excluindo pequenas e médias organizações da conversa — e, consequentemente, da distribuição de recursos.

O que seria, afinal, um ecossistema saudável de informação, suportado por políticas públicas, que torna os cidadãos suficientemente equipados para participar do processo democrático?

Ainda que haja consenso sobre a importância do jornalismo para a democracia, o que parece ficar de fora do debate é a necessidade de se pensar uma política pública que dê suporte para o ecossistema de informação no presente. Veja, estamos falando sobre informação, e não sobre a indústria.

Claro, controlar ou reduzir a produção e a circulação da desinformação é um passo importante. Garantir que a indústria do jornalismo continue fazendo seu trabalho, ou seja, produzir jornalismo de qualidade, é outro. Investir na educação midiática das audiências faz sentido também.

Mas e se, em vez de desenharmos leis apenas para tratar dos sintomas do que parece a consequência de um sistema ultraconcentrado, de interesse privado — e portanto desigual -, de produção e distribuição de informação, vislumbrássemos um cenário ideal?

O que seria, afinal, um ecossistema saudável de informação, suportado por políticas públicas, que torna as cidadãs e os cidadãos suficientemente equipados para participar do processo democrático? Para responder a essa pergunta, nós acreditamos ser preciso colocar uma nova lente sobre o que consideramos jornalismo. Resolver o problema de desinformação passa, portanto, por ampliar o conceito do que entendemos por produção e consumo de informação — em especial em nível local.

É no município que as pessoas exercem sua cidadania: vão à creche, tomam vacinas e constroem suas casas. E é também no município que o acesso à informação é mais escasso.

No Brasil, segundo o mais recente Atlas da Notícia (2022), cerca de 50% das cidades são consideradas desertos de notícias — não têm pelo menos uma organização jornalística local. São 5 em cada 10 municípios, com cerca de 29,3 milhões de habitantes somados.

Pesquisas comprovam que a ausência de um ecossistema de informação local contribui para a manutenção de currais eleitorais, corrupção do poder público e diminui o acesso a direitos básicos, além de desincentivar a participação do cidadão nas instâncias da política próximas do seu cotidiano.

Há uma demanda por informação pouco atendida nesses contextos. E isso ficou explícito durante a pandemia. Ainda que orientações de saúde fossem dadas pela TV aberta, havia necessidades que o jornalismo nacional ou mesmo regional não dava conta de cobrir. No Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, por exemplo, moradores e organizações do território se uniram para colocar faixas orientando a população sobre como se prevenir no caso de não haver água encanada em casa para lavar as mãos.

Também durante a pandemia, a Agência Mural, que cobre as periferias de São Paulo, lançou em formato inédito um podcast diário pelo Whatsapp. “Eram muitas incertezas e desinformação e elas vinham, inclusive, da nossa rede de correspondentes”, diz Anderson Meneses, diretor de negócios. O projeto foi planejado para operar por 15 dias e teve, por fim, 160 episódios — distribuído gratuitamente para uma lista de 2.500 assinantes e em rádios comunitárias.

“Na pandemia, em especial nas reportagens sobre auxílio emergencial, vacinação nos bairros e fornecimento de água potável, o tempo de leitura era altíssimo, entre 6 e 7 minutos”, avalia.

O jornalista Harry Backlund, co-fundador do City Bureau, um laboratório de jornalismo local que fica em Chicago, nos EUA, diz que esse movimento nasce para atender as necessidades básicas de informação de uma comunidade.

Neste texto, ele propõe que olhemos para informação como a gente olha para outros itens de necessidade vital e dá novo uso à pirâmide de Maslow para exemplificar sua teoria: “na base, e em abundância, teríamos as informações essenciais, como acesso à moradia, alimentação, mobilidade e trabalho. No meio, as informações que ajudam as pessoas a se conectarem e se comunicarem para viver em sociedade. E no topo as informações aspiracionais, que nos engajam e nos instigam a saber mais sobre como o mundo funciona e o que deve ser repensado”.

Nesse sentido, se formos tentar classificar o tipo de jornalismo produzido em larga escala no Brasil, quase tudo parece estar no topo da pirâmide. Basta resgatar as reportagens sobre auxílio emergencial de grandes jornais durante a pandemia para perceber que a notícia era sobre o lançamento do programa, e pouco sobre como acessar o recurso.

O que Harry e seus colegas nos provocam a pensar é que essa abordagem (principalmente sobre a necessidade de existência de um jornalismo local forte), deveria ser levada a sério se estamos de acordo que o jornalismo deve cumprir sua função social e ser um pilar no acesso a direitos para qualquer cidadão.Isso significa mudar também a visão sobre como e quanto financiar iniciativas que sim, dão conta das necessidades básicas de informação da população e garantem, na prática, o real funcionamento de uma sociedade democrática.Essa pauta está quentíssima nos Estados Unidos. Um relatório do Nieman Report publicado em fevereiro compila oito projetos de investimento público para fomentar iniciativas comunitárias de informação nos municípios, distritos e estados.

É o caso da Lei de Informação Cívica de New Jersey. Aprovada em 2018, foi a primeira lei estadual a criar uma política de fomento à informação local. Foram quatro anos debatendo com organizações sociais do campo para criar um consórcio que hoje administra um fundo de US$ 3 milhões para investir não só em jornalismo, mas em iniciativas que engajam o cidadão a participar de decisões locais e a cobrar o poder público. “O modelo de consórcio foi baseado em outras instituições que gerenciam fundos, como é o caso das artes”, explica Mike Rispoli, diretor do Free Press, instituto que lidera o grupo.

Por meio da Free Press, Mike faz parte de uma rede que defende e promove, além do acesso a recursos públicos (e privados, principalmente da filantropia), um entendimento sobre o que o campo do jornalismo local deveria contemplar. Ele é coautor do The Roadmap for Local News, mais um relatório lançado em fevereiro que busca cunhar o termo “mídia cívica” para caracterizar organizações que ficam de fora do que é considerado tradicionalmente como “jornalismo local”, mas que ainda assim se dedicam a informar o público, com este foco no engajamento comunitário e acesso à cidade/município.

O Brasil tem experiências pioneiras nesse sentido, como é o caso da Política Estadual de Incentivo às Mídias Locais, Regionais e Comunitárias, projeto de lei aprovado em 2014 pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, mas que teve vida breve. Criado com o objetivo de fortalecer os pequenos meios de comunicação, ampliar a transparência na administração pública e democratizar o fluxo das informações direcionadas à população, o projeto estabelecia o direcionamento mínimo de 20% do orçamento de publicidade da Secretaria de Comunicação para essas organizações.

Ele entrou em vigor para equilibrar um cenário desigual comum a outros municípios. Em 2013, o estado registrava, segundo dados da Lei de Acesso à Informação publicados pelo site Sul21, um investimento entre 5% e 10% em meios locais, regionais e comunitários e de 95% a 80% nos quatro grandes grupos de comunicação do Rio Grande do Sul.

A lei foi inspirada num programa de 2012, criado pela Secom estadual, que havia cadastrado mais de 200 iniciativas de rádios comunitárias para redistribuir a verba publicitária do governo — o valor pagava em geral contas fixas, como aluguel e internet.As eleições municipais são no ano que vem. Como é que vamos garantir que informação de qualidade seja produzida e esteja ao alcance dos eleitores em cada município, para que possam escolher as mais de 50 mil lideranças políticas no país em 2024? Temos pressa.

Izabela Moi é jornalista, cofundadora e diretora-executiva da Agência Mural de Jornalismo das Periferias. Fellow do programa JSK de liderança, empreendedorismo e inovação da Stanford University (EUA) em 2015, é professora visitante no mestrado profissional do Institut Français de Presse, em Paris, desde 2019.

Nina Weingrill é jornalista, cofundadora da Énois e da Escola de Jornalismo (2009) e consultora para organizações de jornalismo. É fellow do International Center for Journalists (EUA), onde pesquisa ferramentas e metodologias para o fortalecimento do jornalismo local e suas interseções com políticas públicas. É membra fundadora da Ajor e parte da rede Future of Local News.

Originally published at https://www.nexojornal.com.br.

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Nina Weingrill

jornalista e co-fundadora @enoisconteudo | Escola de Jornalismo | #RedaçãoAberta. bolsista @ICFJ . pesquisa ecossistemas de informação local.